29 de outubro de 2010

Primeira Página


Sentado em uma saleta escura Bento olhava fixamente para uma folha de jornal, velha e amarelada que datava o dia sete de novembro de 2000. A observava com atenção e aquelas palavras dispertavam-lhe sensações que há muito tempo não sentia, da garganta eram produzidos pequenos ruídos, grunidos... Estava agindo como um cão selvagem.
A notícia revelava seu verdadeiro ser, pois como se diz por aí ele de bento, só tinha o nome, pois vivia em um mundo cheio de fantasias, todas banhadas a vinho e a mais baixa promiscuidade.Vivia metido em confusões,que levava como prêmio de consolação um roxo no olho. De bento não tinha nada, só o nome,e muitos e muitas por ai o mandavam todos os dias para o inferno e que de lá não saísse mais,tamanha a sua ignorância e sua mediocridade.
Era um sujeito de fases, pois em cada semana tinha uma obsessão.Durante uma semana tinha um desejo incontrolável de aprender algum idioma estranho, na outra contorcia-se de vontade de possuir a vizinha, mas utimamente essas crises de pura loucura intesificaram-se e ele vivia uma mesma doença por mais de dois meses. Bento focou-se em juntar todos os jornais que tinha lido nos últimos dez anos.
Passava horas e horas, diariamente, revirando todos os cômodos do velho sobrado, herança de seu tio que Bento tinha grande estima, após achar qualquer recorte de jornal perdido pelo espaço dirigia-se até a saleta e sentava-se em uma poltrona velha e empoeirada. Agora Bento adotara uma nova forma de vida, esquecia do presente e os jornais velhos virariam suas horas, seus segundos.Vivia como homem primitivo, não saía de sua grande e velha caverna e cada notícia achada era colada na parede, tornando-se arte rupestre.Agia por extinto, esquecera-se do mundo externo, não saía para caçar,alimentava-se de comida congelada que era aquecida no microondas, para ele fogueira, pois quando se apertava a tecla on significava a primeira faísca, obtida no Paleolítico.
A comida era comprada por seu único e distante vínculo com a modernidade.Josefa, para os íntimos Zefa, no forró Zefinha, era uma migrante nordestina que vinha de uma pequena cidade do sertão pernambucano e que vivia em sampa há 20 anos. As rugas e as mãos calejadas demostravam a díficil rotina de uma empregada doméstica que passava mais da metade de sua vida limpando mansões de madames fúteis do Jardim Europa,porém certo dia uma dessas madames a acusou de roubo e ela foi enxotada da bela casa com piscina como um cão sardento. Após isso jurou para si mesma que jamais voltaria à aquele bairro. Mulher religiosa, devota de padrim Cícero ia a casa de Bento duas vezes por semana. Sob a mesa da cozinha sempre havia o dinheiro para a compra dos congelados e um envelope contendo seu pagamento. Achava Bento estranho e às vezes tinha medo dos hábitos peculiares de seu patrão, porém a necessidade fazia ela dirigir-se à Vila Madalena ás terças e quintas, onde o cenário era sempre o mesmo, a casa revirada como se fosse assaltada todos os dias.
A viagem pelo passado em vias jornalísticas fazia Bento cruzar a tênue linha da obsessão e da loucura. A magreza,agora excessiva,revelava um homem sensível e triste, que mesmo durante toda sua vida tendo uma comportamento relativamente divertido e perigoso era um ser medroso e infantil. Lia diversas manchetes,construía em sua mente uma linha do tempo marcada por desatres naturais, escândolos políticos,porém aquelas notícias não contavam sua épica história.
A cada palavra emitia um som diferente, a voz saía trêmula... Os sons agora tomavam sua consciência, traziam-lhe a sensação que não podia mais falar, havia algo rasgando suas cordas vocais...Não existiam mais palavras pronunciadas, agora ele comportava-se de maneira animalesca pronunciando fonemas perdidos... /f/,/asshh/, Hhhhhhhh... Os fonemas davam a sensação de prisão, uma angústia incansável tomava conta de seu sistema nervoso. Por mais que lesse inúmeras palavras não achava uma frase pronta em sua cabeça, sentia sua garganta presa, não podia gritar, pedir ajuda. Precisava acabar sua linha do tempo, cumprir o lide, precisava finalizar sua pintura pré-histórica. Uma última machete fecharia o ciclo.
Na quinta-feira Josefa chegou ao seu local de trabalho. Estranhou o lugar ao ver que nada estava revirado, tudo exatamente igual ao que deixara na terça passada. Foi a cozinha, chegou-se perto da mesa não havia envelope, nem dinheiro. Pensou que o patrão não estava em casa e então poderia fazer seu serviço de maneira mais leve, pois com Bento em casa, Josefa tinha a sensação de estar sendo observada o tempo todo. Observou o local não havia muito o que fazer quando viu a pequena porta do sótão entreaberta. Dedicada e de certa forma curiosa, pois sempre perguntava-se o que tinha atrás da porta, que vivia sempre trancada e de onde ela ouvia barulhos estranhos, resolveu entrar para limpar o local quando deparou-se com a primeira página do jornal do dia seguinte.
A poltrona derrubada e um corpo pendurado em um suporte de ferro,de uma prateleira inexistente, seria a cena descrita na reportagem. Finalmente Bento parou sua palavras, seus pensamentos, enforcou-os. Agora teria o fim de sua cronologia, tornaria-se finalmente um homo sapiens. Parou sua vontade de gritar, os grunidos foram substituídos pelos gritos de desespero de Josefa e posteriormente o barulho da sirene da polícia. As cordas vocais foram rasgadas por um firme nó de corda, a vontade de gritar sumiu assim como sua voz, que já era pouca e que calou-se de vez.

Mari Pereira

14 de outubro de 2010

A bailarina que perdeu seu compasso


Veste as sapatilhas delicadamente o grande espetáculo aproxima-se. Se olha, com seus enormes olhos negros, no espelho. Sua imagem é radiante, um certo ar de glória e santidade toma conta da jovem bailarina. Devidamente vestida segue para o palco.
Para ela este local é sua casa, pois consegue desenvolver seus rodopios e suas piruetas como a perfeição do voo das borboletas... Seu ego descansa sobre a madeira preguiçosamente. Dança e encanta, com sua flutuante saia e com seu sorriso empolgante ela conquista cada coração presente e faz o grande e respeitável público entrar em uma onda de puro êxtase.
Acaba o sonho, a bailarina descalça as sapatilhas e volta a sua realidade, que não é tão doce e bela como seus rodopios.
A dona dos pequenos pés tão habilidosos não conquista um único coração... Um tal soldado que sempre está envolvido em outros braços. A bailarina está disposta a largar sua leveza e encarar a batalha, porém o soldado não vê o esforço da bailarina e ignora sua existência.
A bailarina chora e suas lágrimas molham o velho tapete da sala.O descaso do soldado a fere dia após dia e os grandes olhos negros tornam-se ainda maiores e com mais brilho, porém este escorre pelo seu rosto.
A jovem decide ir para o front de batalha, pois quer ver seu soldado todos os dias,sentir sua satisfação e ouvir suas palmas ao fim de cada pirueta.
Versos escritos e transmitidos na mais bela forma de dança, o amor traduzido através de seus movimentos delicados e precisos de seus pés parecem não tocar o inatingível coração do soldado.
O soldado já se deixou tocar pelo amor, porém cansou-se deste e deixou uma bailarina triste por aí. Mas é impossível não notar o grande apresso que recebe, mas este passa sua postura firme e restringe seus olhos, como é feito em estratégias de guerra, e não percebe a bailarina.
Os pés delicados não cansam de tentar, fazem seus movimentos graciosos e certos de maneira perfeita. As mãos oferecem rosas, doçuras e abraços mais isto para o soldado parece não ter valor.
Os grandes olhos o observam com ares de admiração... Acompanhavam cada ação, cada passo e desenhava em sua alma múltiplas cenas de perfeição, nas quais o soldado abandonava sua armas e juntaria-se a bailarina... Contudo as imagens sumiram como neblina.
O soldado elogia os rodopios da bailarina, às vezes importa-se com ela e assim seu coração enche-se de esperança, pois acredita que poderá levar consigo o coração e os beijos dele. Porém são meras suposições.
A bailarina acredita que está perto de seu grande objetivo, ter seu soldadinho para sempre, porém em certa manhã cinzenta ela andava despreocupadamente pensando no sorriso de seu soldadinho quando deparou-se com uma cena que fez seus sonhos virarem pesadelos, seus pequenos pés tão talentosos perderem o compasso. Ver o soldado envolvido em outros braços, recebendo outros lábios ao invés do seus, fizeram a bailarina não ter mais vontade de dar piruetas e encantar seu público.
Ela havia perdido as esperanças, perdeu a leveza , a delicadeza... Sua rosa interior murchou e em seu lugar foi colocada uma rocha.
Acabaram-se os rodopios, as piruetas e o sorriso não voltou mais ao seu rosto. O público abandonou o espetáculo e o palco antes sua casa, agora tornava-se um quarto escuro de onde ela fugia.
O soldado não se sabe onde se escondeu. Deve estar no fundo do peito, debaixo da rocha, e se algum dia a rocha fragmentar-se o soldado será lembrado com lágrimas... Mas dentro ou fora do peito, acima ou abaixo da rocha o soldado fez a jovem bailarina esquecer seus rodopios e piruetas, deixar temerosos seus pequenos pés... O soldado cumpriu seu papel na guerra, fez a bailarina perder seus versos a esperança e seu compasso.

Mari Pereira